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segunda-feira, 29 de setembro de 2008

"As dores de uma deficiência"

Texto de Sandra Estêvão Rodrigues

"Muitas das doenças causadoras de deficiência produzem mal-estar: dores agudas ou crónicas, de variada intensidade, dores físicas, perfeitamente localizadasno corpo, ou emocionais, as que afectam a nossa percepção da vida, que determinam o nosso humor.

As dores físicas podem ou não existir, mas as que designo por emocionais sempre existem num ou noutro momento, tão reais como as primeiras.

Estas fazem-se sentir por mil razões: pelo que se deixa de poder fazer, pelo extremo esforço que é necessário para se conseguir realizar todo um conjunto de tarefas, porque fica mais difícil garantir a autonomia que desejamos, porque somos obrigados a redefinir percursos escolares e profissionais, afectandoassim também as nossas possibilidades económicas e consequentemente de nos garantir uma vida digna.

Que não subsistam dúvidas sobre o conformismo a uma deficiência, é falso que ter uma deficiência implique passividade face à vida. Temos sonhos, temos desejos, talvez por vezes doseados pelas restrições a que estamos sujeitos.

Mais que todas as razões mencionadas para as dores emocionais, a dor de nos sabermos rotulados, de sermos abandonados ou super protegidos sem respeito pela nossa liberdade de escolha, de nos fazerem perguntas intrusivas, às vezes completamente descabidas, de tudo o que supõem que nós somos e não somos, podemos ou não podemos. E a dor aguda e crónica, porque é uma pontada que sempre nos acompanha, a da piedade de alguns, transposta na concepção que nós somos a deficiência. Não nos vêem, não se interessam por nós. Olham-nos de cima de uma virtude que supõem ter, falam connosco sempre a mirar a nossa deficiência, pensam que não podem dizer a um cego “estás a ver?”, mas dizem “a tua mãe teve muita coragem em decidir não abortar-te”. Sim, sei que há os que nos amam, respeitam, mas os outros... são mesmo o nosso inferno e existem em abundância, em todos os contextos, até naqueles que deveriam ser de ajuda.

Pobres desses hipócritas que tentam com palavras e gestos demonstrar como a sua vida vale mais a pena, mas que quando lhes chega a insónia ou os pesadelos ou um momento vazio, se confrontam com as suas misérias tão ou mais profundas como as dos que eles rotulam. É que as verdadeiras misérias humanas são independentes das características físicas de cada um.

Uns lamentam-nos sem respeito, surpreendem-se com as nossas valias, invejam as nossas conquistas: “até aquele conseguiu, em vez de mim...”. Outros passam a vida a criticar os que têm comportamentos inapropriados face à deficiência e na hora em que precisamos de ajuda, mandam-nos desenrascar, na crença que a igualdade é para se fazer desta forma, sem compreender que a igualdade de oportunidades faz-se discriminando as diferenças de cada um e dando condições especiais a quem tem necessidades especiais. Ou, aproveitando a nossa fragilidade, fazem-nos crer que o que pedimos é inatingível, abusando do seu poder para nos dizer que não, antes mesmo de avaliar se a resposta tem de ser negativa. Por vezes também dizem que sim, para nos tranquilizar ou ganhar tempo, enquanto as acções subsequentes nos mostram que afinal era não o que queriam dizer.

Já sem falar nos que nos atribuem uma miséria de que não padecemos para exaltar a sua magnificência, proporcionando-nos uma esmola sob a forma de iniciativasque apenas servem para camuflar as suas próprias misérias. É que o que valem como escolha é tão pouco que precisam de exaltar as misérias alheias como o grande mérito das suas possibilidades de acção."

Sandra Estêvão Rodrigues
Texto enviado pelo leitor Francisco
"um desabafo de uma invisual,que é a fotografia do real..."

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